sexta-feira, 6 de julho de 2012

O barro e o Oleiro por Caio Fábio









Leia Jeremias 18. 1 -  6

Esse é um dos textos do velho testamento mais simbolicamente esperançosos que pode nos vir a mente e ao coração e ele é construído a partir de uma palavra de Deus que fazia com que Jeremias saísse da sua casa e fosse até a rua na certeza de que Deus iria falar com ele pela singeleza de algo que ele não sabia ainda o que seria, mas a palavra de Deus para Jeremias era esta – sai  de casa agora, vai visitar o oleiro, que está trabalhando com barro, fazendo vasos e Jeremias saiu e chegou lá e viu o oleiro, pedalando, no modo mais antigo de se fazer um vaso onde você tem um pedal embaixo, cordas que giram e em cima uma roda maior de madeira vai girando, há um pino aonde o oleiro joga o barro em volta e vai ajustando o barro em volta daquele pino, o barro tem que estar molhado, ele mistura, joga água frequentemente sobre o barro e diz Jeremias: ele estava entregue à sua obra, porque um bom oleiro para fazer um bom vaso ele precisa se misturar com a sua obra, se entregar à sua obra, não há nele possibilidade para distração, ele está ali entregue à sua obra  e o homem estava trabalhando, só que o vaso que ele está produzindo é tirado de um material sem forma, ele é barro, barro que precisa estar maleável, molhado, formatável, exposto a todos os vetores de força física, a gravidade, as interações da força que o oleiro põe  no próprio barro para ir formando alguma coisa, a estrutura, a densidade do material em si, de modo que todos esses fenômenos estão trabalhando juntos, enquanto o oleiro se entrega ao seu trabalho.


E lá estava Jeremias olhando aquilo que o oleiro fazia. E de repente, o vaso que já estava pronto, já estava possivelmente dando arremates nas beiradas, às vezes começa a fazer pequenos cortes, a estabelecer a forma, antes de levá-lo para a fornada, para que ele se torne denso, concreto e rígido, capaz de se tornar um container, belo e útil, para aquele que o criou quando o oleiro já está neste processo de finalização, aquele vaso que aparentemente já tinha a sua forma definida, de repente se esboroa e se esparrama e se desfaz e se deforma e quando Jeremias olhou aquilo, a palavra do Senhor lhe veio ao coração. Não foi um arrebatamento às estrelas que Jeremias sofreu. Ele não foi levado a nenhum mundo paralelo, era apenas a relação de um indivíduo na sua intimidade com o Deus que fala  através de todas as coisas e para quem todas as coisas estão carregadas de sabedorias e de palavra divina. E quando ele viu aquele desastre do vaso nas mãos do oleiro e o coração dele deve ter se tomado por aquele pena, por aquela compaixão, que dizia - já estava no fim, será que ele terá que fazer isso tudo outra vez? e o vaso parecia já tão definido e agora voltou ao nada, à situação informe. Quando a palavra do Senhor Deus lhe vem ao coração como uma pergunta:
– Jeremias, acaso não posso eu refazer a vida, assim como este oleiro vai refazer o vaso que se lhe estragou na mão? Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro? Eis que como barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão – disse o Senhor a Jeremias.

Eu gosto, e como eu disse inicialmente, mais do que gosto, eu me enternuro com esta palavra porque poucas são tão singelas e tão carregadas de esperança para a vida humana, para a minha vida, para a sua vida, de fato para a vida e para a existência de todos nós porque a primeira coisa que a gente aprende olhando para este acontecimento, que  Deus mesmo fez questão de fazê-lo ter aplicação para a existência humana, para a vida de cada um de nós, é perceber que os materiais da nossa constituição são muito frágeis, eu sou literalmente barro, eu sou pó, eu vim do pó e ao pó eu voltarei, a minha constituição intrínseca e transcendente é que é espírito e voltará ao Deus que o deu, mas o todo do meu ser, a contingência de que eu seja um espírito que habita um corpo, e um corpo que carrega em si todos os elementos da ambivalência, da ambiguidade, todas as químicas da contradição, e carrega ainda em si uma alma, compulsões nem sempre controladas, às vezes à revelia e que está sujeito a circunstâncias, a fatores, a vetores de forças invisíveis. Tudo isso cria uma dinâmica de possibilidades em torno da minha existência semelhante a do vaso que de repente em sendo moldado, pode ser subitamente esboroável, ser algo que assusta-nos por percebermos que  ele da noite para o dia ou em instantes pode ser reduzido a um estado de irreconhecibilidade em relação ao que já tinha sido construído, ao que já tinha sido alcançado.

Esta é a primeira coisa, nós somos muito frágeis. Nosso material constitutivo é de uma natureza muito fraca, se de um lado ela é maleável, de um outro lado ela é profundamente frágil e fraca, assustadoramente frágil, o que é extraordinário é a gente perceber a intenção de Deus de construir os seus vasos a partir desse elemento frágil, porque esse elemento frágil carrega uma ambivalência,  ele é tão frágil, quanto ele também é maleável, ele pode ser refeito, reconstituído, retrabalhado, reformatado, recriado literalmente, regenerado, trazido de um estado de falência para um novo projeto. E é isso que anima profundamente o meu coração. A vida inteira quando eu leio essa palavra  ou me lembro dela porque essa imagem do barro me remete para estes materiais de uma fragilidade extraordinária, a minha essência é extremamente frágil e eu existo em um mundo de forças dinâmicas que trabalham poderosamente contra a formatação que Deus pretende estabelecer na minha vida, de modo que a vida pode ser subitamente estragada, mesmo quando a gente está nas mãos de Deus, assim como o vaso estava nas mãos do oleiro.

Mas Jeremias diz:
– O vaso se lhe estragou nas mãos.

Muitos de nós temos tido a experiência de estarmos andando com Deus e subitamente sermos objeto de um aparente estrago da nossa existência, e trágico é quando esse vaso se estraga longe das mãos do oleiro,  como há um outro episódio em Jeremias em que ele fala do vaso longe das mãos do oleiro já todo torrado, que já foi ao forno, que já foi requentado e que se quebrou outra vez, que virou caco e que  não dá mais para ser molhado, transformado numa massa maleável, e esse vira pedaços para todo lado, mas enquanto vaso é uma massa perene que não se sente vaso acabado, mas que se deseja como vaso inacabado sempre, para estar sempre nas mãos do oleiro, para que havendo algum susto, algum estrago, ele seja refeito, há esperança sempre para este ser, para este vaso de Deus nesta existência. Você já pode ter tido a experiência de ter se sentido tão bem formatadinho e de repente, de súbito, ver a vida se estragar, esta é a palavra usada, se estragar, parece que todo o trabalho feito foi desperdiçado, parece que toda energia de construção do oleiro na sua vida, todo carinho, todo cuidado, porque é uma obra de artesão muito cuidadosa, muito delicada, se está lidando com um elemento muito frágil, são toques, são modelamentos, são formas que ele vai criando de maneira quase mágica aos nossos sentidos como ele vai formando e de repente tudo desmorona.

E o coração de Jeremias estava neste estado, ele olhava para trás, para toda a história de Deus com o povo de Israel e via o estado de Israel como esse, de um ente que tinha tido tantas interferências e ações divinas para moldá-lo, mas que de repente se estragou por completo e o Senhor disse: – Jeremias, você viu como o barro que já era quase um vaso  se estragou nas mãos do oleiro? Acaso não posso eu também pegar esse barro que se estragou e fazer dele um novo vaso? Não posso eu fazer isso com vocês, eu sou o oleiro, vocês são o barro, a única coisa que importa é estar nas minhas mãos, essa é a única coisa que de fato interessa,  a única coisa que importa é estar nas mãos dele porque a vida estragada precisa de um projeto novo quando se estraga, conforme aqui se diz: Eu posso fazer outra vez um outro  vaso, não necessariamente nem mais o mesmo vaso porque há certos vasos que se estragam porque Deus tem um projeto novo e um projeto melhor, se o barro está nas mãos do oleiro, porque a vida estragada só tem que estar nas mãos de Deus para que não perca jamais o seu sentido, nem a sua esperança e nem a sua designação. Eis que como barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão.

Eu sei exatamente o que você pode estar vivendo e sentindo tendo já tido a experiência de uma vida que ganhou formas e contornos e definições e visibilização de um acabamento quando de repente a coisa inteira rui e aparentemente se estraga nas mãos do oleiro. Eu tinha conhecido o meu oleiro aos 18 anos de idade e me deixei colocar na roda dele onde ele jogava água da palavra, água do espírito, água do amor, água da verdade, água da justiça, e me mantinha em estado girante na dinâmica do seu pedal sob as forças mais poderosas da sua mão do que as da gravidade, do que a da minha própria densidade constitutiva,  eu estava ali nas mãos dele. O problema é que diferentemente desse barro inerte nós somos um barro vivo, nós somos um barro com livre-arbítrio, nós somos um barro com certas auto-determinações, nós somos um barro com caprichos, nós somos um barro cheio de volições, cheios de vontades, cheios de idéias a respeito da sua própria designação, formatação, aparência, nós somos um barro de vaidades.

E eu comecei ali aos 18 anos de idade, na roda do meu Senhor, do oleiro da minha existência e durante anos, anos e anos o meu barro foi um barro totalmente submisso e feliz conforme os moldes e as construções e as determinações dele na minha vida. Até que chegou um tempo, um pouco antes do meio da década de 90, quando este barro, começou a se tornar um barro frustrado, chateado, amargurado, vaidoso, triste, começou a achar que as coisas a sua volta não mudavam por razões de algum tipo de impotência do próprio vaso em relação não a si mesmo, mas era um vaso com vontade de fazer intervenções maiores, e aí nesse processo, embora o vaso nunca tenha se tirado das mãos do oleiro, por essa simples vontade de auto-determinação em relação a si mesmo esse vaso se estragou na roda e eu me lembro que 4 anos depois, por volta do final de 1999, depois que em 98 me deu a sensação de que o vaso era irrecuperável tamanho tinha sido o estrago, mas no final de 99, início do ano 2000 eu me sentia numa outra roda, numa roda quase que incompreensível, com a minha mente girando, girando, literalmente sem rumo, eu saía da minha casa pela manhã e era capaz às vezes de fazer 12 voltas, 15 voltas numa rotunda porque havia 4, 5 caminhos diferentes saindo daquela rotunda nas proximidades da minha casa e eu rodava, rodava porque a minha mente pensava um segundo em tomar um caminho, no segundo seguinte era outro,  no outro segundo já era um terceiro caminho, de modo que eu estava sempre me arrependendo do caminho que eu tinha decidido pegar no carro. E quando eu via eu já tinha feito 10, 12, 15 voltas na mesma rotunda. Quando eu acordava e dizia: Meu Deus, como eu fui me tornar essa pessoa que gira em torno da mesma rotunda e não sabe nem que caminho seguir? Pelo tufão de possibilidades e impossibilidades instaladas na minha mente que impediu até a determinação da minha escolha básica de uma estrada. E o meu coração dizia:como eu pude vir de onde eu estava? Acordando todos os dias com tudo simples, claro e reto diante de mim para me colocar neste estado de ter a vida parecida com a situação dramática e expressa nesse meu fazer voltas nesta rotunda sem escolher um caminho, sem saber em que direção ir, de modo que eu entendo completamente se  esse for o seu sentimento hoje.

E eu sei o sentimento horroroso de falência, de aparente desconstrução absoluta e irreversível da vida quando a gente entra neste estado. O maravilhoso e o surpreendente disso tudo é que sendo eu e sendo você barros volitivos, com vontade, barros com pseudo auto-determinação, nós nos estragamos nas mãos do oleiro, mas o oleiro não desiste de nós. A gente se sacode para além das mãos do oleiro e derrama nossa própria estrutura pelas beiradas e nós nos esparramamos, mas o oleiro é misericordioso e ele vai nos batizando com mais graça, com mais amor, com mais verdade e ele amassa a gente e ele espreme de novo e ele bate, bate, esmaga, achata e a gente fica ali dentro pensando que ele está nos destruindo e ele está só nos preparando para nos refazer uma outra vez porque ele não se cansa e ele vai batendo, batendo, e quando ele amassa, amassa, esboroa-nos todo e quando a gente fica uma massinha de novo uniforme, o pedal dele se acelera, se acelera, aí ele começa com mais delicadeza e vai nos ajuntando e vai nos elevando e, de repente, o vaso vai ganhando forma. Às vezes era um vaso muito alto que agora ele decidiu colocar numa outra estatura, ele era alto, mas o container era fino, agora ele aumenta, antes as paredes eram mais grossas, agora ele afina as paredes e torna um bojo diferente, ele faz como ele quer e assim somos nós nas mãos desse oleiro eterno. E essa é a palavra da graça por excelência porque fala dessa insistência amorosa do oleiro em nao permitir que o vaso se estrague nas suas mãos por causa desse barro cheio de caprichos, de volições contrárias ao sentido do projeto divino para a nossa existência.

Se você é essa pessoinha que está olhando pra si mesmo hoje e dizendo: Eu me estraguei pelo caminho. É verdade. Você se estragou, foi você, fui eu, fomos nós que nos estragamos. Quando a gente se estraga longe das mãos de Deus, já com aquela pretensão de sermos vasos acabados, é trágico, como diz o Senhor através do profeta Isaías, a gente vira aquele caco, duro, que já  supostamente teria passado pela fornada, que já nao estaria mais disponível para ser consertado, nem molhado, já está enrijecido, mas quando nós somos esse vaso que nunca se afastou das mãos do oleiro, por mais que essa tragédia tenha nos acometido a única coisa que importa é que nós não tenhamos nos tornados vasos de cristaleira, nem de depósito.

A nossa oração existencial tem que ser essa: Senhor, eu quero, todos os dias da minha vida, estar sob as tuas mãos, porque ainda que num surto sutil e imperceptível, as minhas vontades, caprichos, volições me façam ter auto-determinações antagônicas ao teu projeto eu sei que eu vou apanhar, eu serei espremido e amassado, eu serei ajuntado, mas a roda vai se acelerar de novo e tu vais me molhar com teu amor, com teu espírito e com a tua palavra e eu vou ficar outra vez bem maleável, bem molhado, frágil e flexível e tu vais iniciar a obra de refazimento, de reconstrução até aquele ponto em que tu digas para ti mesmo que eu me tornei um vaso de barro, mas no qual tu vais fazer habitar grande tesouro e eu quero me oferecer a ti como um vaso que mesmo que tu digas que está pronto para levar tesouros eu quero me sentir a vida inteira e me pôr a vida inteira nas tuas maos, sem jamais tornar-me um vaso autônomo e independente, eu quero viver nas proximidades do meu consertador, daquele que me cura, daquele que me refaz, daquele que insiste em mim em qualquer que seja a circunstância da vida  ao mesmo tempo em que eu não vou brincar de exercer a minha vontade contra o teu projeto, a minha volição contra o teu desejo, nem o meu arbítrio contra a tua decisão, contra o molde das tuas definições para a minha vida, contra o teu mandamento, contra a construção pré-estabelecida na tua palavra e aplicada à minha individualidade porque tu és aquele que constrói vaso a vaso com o amor de quem constrói uma peça única.

Esta tem que ser a minha oração e a sua  todos os dias da nossa vida porque a existência é dinâmica e os nossos materiais são frágeis e além de frágeis ainda carregam essa pseudo auto-determinação, trabalha contra o oleiro, mas se estivermos na roda da graça, girando no ambiente das suas mãos e se por alguma razão que não tem que ser alguma determinação nossa, só pode ser um acidente, nunca uma escolha, se por alguma razão nós nos auto acidentarmos nas mãos do oleiro, ele vai refazer tudo de novo.

Vai fazer 12 anos que eu me vi rodando vários dias seguidos na mesma rotunda sem saber qual entre os cinco caminhos escolher e hoje eu olho para trás e me lembro de anos e anos de um caminho simples girando na mesma girada, nas mãos do oleiro, feliz da vida, depois eu me lembro daquele período de vaso estragado e me lembro que enquanto ele batia em mim, eu que estava tão acostumado a saber que tipo de vaso eu era não sabia nem que direção que a roda estava girando e eu perdido ainda querendo me compreender no processo, até que eu comecei a relaxar e dizer: eu não tenho que escolher nenhum caminho de auto-determinação em relação a minha vida, eu tenho só que ficar aqui quieto nas mãos do oleiro e quando eu me aquietei e fui entendendo todas as batidas como atos de graça, de amor e de refazimento e todas as águas que ele jogou sobre mim, inclusive as lágrimas do luto, do choro como umidade essencial para refazer o vaso. De repente, eu fui sentindo que a pedalada dele foi acelerando. Aí você olha e diz: Ele está realmente fazendo coisa nova em mim porque ele é bom e porque a sua misericórdia dura para sempre. E a única coisa que eu quero é não sair da mesa onde o oleiro cuida de mim, ele decide tudo, se ele quiser encher o vaso de todos os tesouros, ele sabe que o vaso é de barro, eu não sou dono de mim mesmo, eu só não quero estar longe das mãos de quem pode me refazer e não quero ter nenhum projeto de auto-determinação autônoma promovido por qualquer que seja o sentimento humano, porém afastado da submissão ao mandamento, ao amor de Cristo que nos constrange,  que nos molda, que nos faz e nos preserva nas mãos de Deus.